Tem jeito certo?

Coluna do David Coimbra no jornal Zero Hora de hoje:
DAVID COIMBRA
O jeito certo é o jeito certo
Você vai a uma vila de qualquer cidade brasileira e ouve uma mãe chamando:
– Wescley, Wellington, Jennifer, Suellen e Pâmela: já pra casa!
São ipsilones, dáblios e eles duplos às catadupas, isso para não citar os vários tipos de Maicons (o mal que Michael Jackson fez ao Brasil ainda será devidamente apurado). Por que essa paixão pelo anglicismo? Porque o pobre acha que o nome em inglês é coisa sofisticada. Coisa de rico.
Aí o rico, o que ele faz? Bota no filho o nome mais ortodoxo possível, um nome que, na década de 70, seria da avó: Maria Carolina, Antonieta, Antônio Pedro, Carlota, João.
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O pobre gostaria de ser rico. O pobre não quer ter um Fusca 77; quer a BMW do ano. O pobre não quer morar na vila; quer uma cobertura no Moinhos de Vento. Significa que ele despreza seu Fusca ou sua casinha? Não. Ele valoriza um e outra. Afinal, é o que tem. Mas ele preferia ter algo melhor.
Sou neto de sapateiro, já contei. Meu avô não estudou. Aprendeu a ler e a escrever sozinho. Lia muito e valorizava a cultura. Escrevia errado, e se envergonhava disso. Às vezes, apontando para o radinho de pilha sobre sua mesa de trabalho, suspirava:
– David, ouve só o Cândido Norberto e o Mendes Ribeiro falando. Presta atenção: como eles falam bem, como falam certo. Que bonito isso. A gente tem que se esforçar para falar certo.
Meu avô admirava um conhecimento que ele não tinha.
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É melhor ser rico, bonito e com saúde do que pobre, feio e doente. Óbvio. Mas nem todo mundo pensa assim. Li, na Zero Hora de quinta-feira, a doutora em linguística Ana Maria Stahl Zilles defender, em entrevista, o livro do MEC que ensina a falar errado. Para ela, o livro não ensina a falar errado. Diz a doutora sobre o livro: “Faz a distinção entre a variedade popular e a variedade culta, e mostra que elas têm sistemas de concordâncias diferentes. Eles dizem que na variedade popular basta que o primeiro termo esteja no plural para indicar mais de um referente. Quando os autores explicam que é possível falar ‘os peixe’, não estão querendo dizer que esse é o certo, nem vão ensinar a pessoa a escrever errado. Isso é como as pessoas já falam”. Mais adiante a doutora observa: “Se um professor diz para um aluno que o modo que ele, os pais dele e os amigos dele falam está errado, ele vai se sentir entre dois mundos”.
Cultivo a sólida certeza de que a professora Ana Maria é competente e culta, mas talvez haja algo que ela não saiba. É o seguinte: as pessoas NÃO QUEREM falar errado. Elas NÃO GOSTAM de falar errado. Elas TÊM VERGONHA de falar errado. Mesmo, e principalmente, os pobres. Os pobres QUERIAM MUITO que lhes fosse ensinado como falar corretamente. E outra: os pobres JÁ SABEM que estão entre dois mundos.
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Ah, sim, a língua é dinâmica e muito do que hoje é certo amanhã não será. Há o que caia em desuso – ninguém mais escreve destarte e outrossim porque ninguém mais fala destarte e outrossim. Há o que se consagre pelo uso – as pessoas já estão escrevendo “se diria” porque todos falam “se diria”; ninguém fala “dir-se-ia”. Um dia, viveremos num mundo sem mesóclises.
Mas essas mudanças ocorrem lentamente e são absorvidas ainda mais lentamente pela língua padrão. Primeiro, se consagram na língua falada. Depois, aos poucos, são reproduzidas pela língua escrita. Só então, quando já se tornaram de uso corrente, é que aparecem em um livro didático, como esse ERRADO do MEC.
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Duvido que alguém minimamente letrado não se sinta levando um soco no ouvido ao ler “os peixe”. Algum gaiato há de lembrar que Lula fala “os peixe” e é popular. Mas, creia, Lula é popular apesar de falar “os peixe” e não por causa de. Repito: o pobre não quer ser ignorante.
Quando o pobre, o rico, o remediado, quando qualquer pessoa passa pela escola, quando ela aprende e lê e se informa, ela cresce espiritualmente. Ela se transforma. Ela repudia a ignorância e a grosseria. Repudia, por exemplo, o racismo em qualquer parte, inclusive nos estádios de futebol. Ela se arrepia quando alguém escreve ou fala errado. Porque, mais do que os doutores, ela sabe como é ruim não saber.

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