Silepse

“Vossa Excelência parece contrariado/a”

 


Em “Vossa Excelência parece contrariado”, o adjetivo “contrariado” concorda com o sexo do ser representado


 

NA SEMANA passada, tratei de uma questão do último vestibular da PUC de São Paulo, em que se abordava o emprego da expressão “a gente” na letra de uma canção popular. No fim do texto, citei estes versos de Drummond: “Eu não devia te dizer / mas essa lua / mas esse conhaque / botam a gente comovido como o diabo”.
Vimos que em “botam a gente comovido” ocorre uma concordância diferente da que pregam as regras gramaticais. O adjetivo “comovido”, masculino, não concorda com o substantivo “gente”, feminino, mas com o seu significado ou valor. Esse “a gente” está aí por “eu”. Em casos como esse, a expressão “a gente” é definida como “a(s) pessoa(s) que fala(m)”; “eu”, “nós” (“Aulete”, versão eletrônica) ou como “a pessoa que fala em nome de si própria e de outro(s)”; “nós” (“Houaiss”). É bom lembrar que o nome desse fenômeno linguístico é “silepse” (concordância com a ideia, com o sentido mais próximo, e não com a forma).

Notou o que fez o “Houaiss” na definição de “a gente”? Vamos lá: que dizer da sequência “pessoa”, “própria” e “outro(s)”? A forma “outros” não carece de explicação, já que pode muito bem ter o sentido de “as outras pessoas”, mas e a forma “outro” (“a pessoa que fala em nome de si própria e de outro”)? Não seria “outra”? Ou será esse outro caso de silepse? E, se for, a que termo se referirá a palavra masculina “outro”?
Que tal vermos os tipos de silepse? Como as concordâncias (verbal/nominal) podem envolver o gênero (masculino/feminino), o número (singular/plural) e a pessoa (primeira/segunda/terceira), são essas as classificações dos diversos tipos de silepse. Quando se diz, por exemplo, que “São Paulo é insuportavelmente suja e esburacada”, com quem concordam os adjetivos “suja” e “esburacada”, femininos? Com “São Paulo”, que, ao pé da letra, é expressão masculina?
Certamente não. Esses adjetivos concordam com o sentido de “São Paulo” (a cidade de São Paulo).
O caso que acabamos de ver é de silepse de gênero, já que o que se trocou foi justamente o gênero (em vez do masculino, da expressão “São Paulo”, empregou-se o feminino, em acordo com o sentido).
É nesse caso que se enquadra o título desta coluna. Em “Vossa Excelência parece contrariado”, o adjetivo masculino “contrariado” não concorda com a forma feminina da expressão de tratamento “Vossa Excelência”, mas com o sexo do ser representado (um deputado, senador, prefeito, governador, presidente etc.). Se a frase fosse dirigida a uma mulher, seria empregada a forma feminina (“contrariada”).
Vejamos outro caso: “Os professores temos plena consciência de que…”. Essa frase só pode ser dita por um… Por um professor, é claro.
Quando atuam como sujeito, formas como “os professores” costumam levar o verbo para a terceira pessoa do plural (“Os professores têm plena consciência de que…”).
No exemplo visto, quebrou-se a “normalidade” com o emprego de “temos”, da primeira do plural, que não concorda com “os professores”, mas com “nós”, forma presente no pensamento de quem emitiu a frase (obrigatoriamente um professor). A silepse agora é de pessoa, já que se trocou a terceira do plural (“eles”) pela primeira (“nós”).
Por fim, veja este exemplo: “Pediu à turma que não fizessem barulho”. A quem se refere a forma verbal “fizessem”? Ao substantivo coletivo “turma”, cuja forma é do singular? Não. A forma “fizessem” concorda com o significado da palavra “turma”. O que há aí, portanto, é um caso de silepse de número, já que se trocou o singular (de “turma”) pelo plural (de “alunos”, “colegas”, “companheiros”). É isso. inculta@uol.com.br
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Publicado no jornal Folha de S. Paulo em 22 de abril de 2010.

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