Inculta e bela

Da Folha de São Paulo de hoje:

PASQUALE CIPRO NETO

“Lugar qualquer (em) que não exista…”
No dia-a-dia, quem é que não diz algo como “Os países que eu fui”, “A rua que eu moro” ou “A roupa que eu estava”?

EDSON TRINDADE COMPÔS “Gostava Tanto de Você”, um dos tantos sucessos de Tim Maia. Diz a letra: “Pensei até em me mudar / Lugar qualquer que não exista / O pensamento em você / E eu gostava tanto de você…”.

Nas questões discursivas dos mais importantes vestibulares e concursos públicos do país, é comum a exigência da noção de que determinados procedimentos podem ser comuns em certos registros lingüísticos e inexistentes em outros. Trocando em miúdos, é comum, por exemplo, que se peça ao candidato que aponte as marcas típicas da linguagem coloquial presentes num texto. Não raro, pede-se também a troca de registro, isto é, pede-se que se reescreva o texto adaptando-o à “modalidade escrita da língua”.
Nesse território, a canção de Trindade é prato cheio. O trecho “lugar qualquer que não exista o pensamento em você” apresenta um procedimento típico da linguagem oral -o emprego do pronome relativo “que” sem a preposição “em” (“em que não exista”). No dia-a-dia, quem é que não diz algo como “A rua que eu moro”, “Os países que eu fui”, “A roupa que eu estava ontem” etc.?
Se a letra de Trindade fizesse parte de uma questão em que se pedisse o que já mencionei e, também, que se justificasse a alteração feita, seria necessário dizer de onde vem esse “em”. Esse “em” vem do verbo “existir” (algo existe em algum lugar).
Pois não é que, quando gravou (lindamente) a canção de Trindade, a paraense Leila Pinheiro adequou a letra ao padrão formal da linguagem? Pode ouvir. Com arranjo mais lento e interpretação comovida e comovente, Leila Pinheiro diz “lugar qualquer em que não exista o pensamento em você”.
Pois é aí que entra a velha história do guarda-roupa lingüístico. Tim preferiu uma roupa; Leila, outra. Ambos têm razão, desde que se observe: a) o fato de que o que é comum num determinado registro pode não ser em outro; b) a “roupa” deve ser adequada à situação.
Nesta semana, tive a honra de entrevistar, para o “Nossa Língua”, o professor de língua portuguesa José Carlos de Azeredo, da Uerj.
Trocamos duas palavras sobre o pronome “cujo”, que alguns arautos da pós-modernidade lingüística dão como “morto”, razão pela qual querem que o dito-cujo seja banido das aulas de língua materna. Azeredo e eu discordamos radicalmente dessa sentença de morte. Pois bem. Como sabemos que nem de longe o pronome “cujo” deixou de freqüentar as variedades formais da língua, sobretudo na escrita, convém saber que construções como “Aquela moça, que o pai foi processado por desvio de dinheiro público…”, que usamos no dia-a-dia, na linguagem oral, espontânea, assumem outra forma na língua culta. Nesse caso, cabe o relativo “cujo”, que expressa relação de posse (a moça tem pai; o pai é dela): “Aquela moça, cujo pai foi processado por desvio de…”.
E se se quisesse dizer que todos confiavam no pai da moça? Vamos pensar: a) a forma “no” resulta de “em + o”; b) se alguém confia, confia “em”; c) o pai é da moça, é dela. Pois lá vai a frase, adequada ao padrão formal: “Aquela moça, em cujo pai todos confiavam…”. “Em cujo pai?” Em se tratando de linguagem formal, sim, “em cujo pai”. E sem “o” depois de “cujo”. É isso.

inculta@uol.com.br

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