Frases e significados

Coluna de Pasquale Cipro Neto, publicada no jornal Folha de S. Paulo de 02 de julho de 2009, p. C2.
“Museu tem acervo roubado”
Se perguntarmos a um grego ou a um turco o que eles acham do acervo de certos museus europeus…
“DAR MURROS em ponta de faca.” É essa a sensação que se experimenta quando se leem títulos como o desta coluna. A preciosidade, é bom que se diga, é real -e não é desta Folha.
O leitor habitual deste espaço sabe muito bem que volta e meia comento pérolas da casa e as identifico; quando a obra-prima é de lavra alheia, silencio (como convém). Posto isso, permita-me perguntar-lhe, caro leitor: que se entende do título em questão? Tomada na sua essência, a frase informa que o que o museu X expõe é roubado. Tá dominado, tá tudo dominado!
Essa bobagem resulta de um chatíssimo modismo: o uso de “ter” como verdadeiro cola-tudo, como se vê, por exemplo, em “Brasil tem proposta aprovada na ONU”, que pode muito bem virar “Proposta do Brasil é aprovada na/pela ONU”.
Dia desses, ouvi esta pérola: “A mulher teve o marido entre os 12 feridos”. Não, caro leitor, você não está lendo a coluna do querido Zé Simão, mas, como diria o brilhante articulista, a pobre mulher pariu o marido em pleno campo de batalha… E ao lado de 12 bravos combatentes alvejados! Rarará!
Custa muito dizer pura e simplesmente que o marido de Fulana é um dos 12 feridos ou que um dos 12 feridos é o marido de Fulana? Parece que custa. Se não custasse, não se leriam ou ouviriam essas e outras pérolas, como: “A empresa teve um de seus ônibus destruído”. Basta dizer que um dos ônibus da empresa foi destruído.
Mas voltemos ao museu e a seu “suspeitíssimo” acervo, fruto de furtos, roubos, falcatruas etc. Como me lembra o nosso querido Hélio Schwartsman, se perguntarmos a um grego ou a um turco o que eles acham do monumental acervo de certos museus europeus…
A solução? Pois é aí que a coisa começa a enroscar. A melhor redação talvez esbarrasse no velho problema do espaço (“Título bom é título que cabe”, lembra?). Algo como “Acervo de museu é roubado” mantém a ruindade. Parece que as saídas são um tanto óbvias: “Acervo de museu é levado/furtado por ladrões”, “Ladrões roubam/ furtam acervo de museu” etc.
Se alguém já está pensando que o problema está no emprego do verbo “ter” e que a solução é pura e simplesmente não empregá-lo, vou logo dizendo que a coisa não é bem assim. O problema está em determinados usos, que criam mais confusão do que boas soluções. Para não dizer que não falei das flores, sugerirei um exemplo de bom uso do verbo “ter”.
Recorrerei ao grande poeta mineiro Murilo Mendes e à sua antológica e genial “Canção do Exílio”: “A gente não pode dormir / com os oradores e os pernilongos / Os sururus em família têm por testemunha a Gioconda”. Como o caro leitor pôde ver, Murilo empregou o verbo “ter” com um complemento (“a Gioconda”) e um predicativo (caracterizador e/ou qualificador) desse complemento (“por testemunha”).
Quer outro exemplo? Lá vai, agora de uma canção popular: “Tem os olhos cheios de esperança, de uma cor que mais ninguém possui” (da e/terna “Olha”, composta por Roberto Carlos e Erasmo Carlos). A coisa é muito simples, caro leitor: basta não inventar. É isso.
inculta@uol.com.br

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