Crase

Texto publicado no jornal Folha de S. Paulo, no dia 07 de maio de 2009, à pág. C2, pelo prof. Pasquale.
Pasquale Cipro Neto
“Febre superior à (a) 39 graus”


Dizei-me vós, Senhor Deus: por que diabos se emprega mal o acento grave mesmo em casos tão óbvios e banais?


E A TAL DA GRIPE (já mudaram o nome da infeliz) não faz mal só às pessoas. Explico: na semana passada, trocamos dois dedos de prosa sobre a formação e o significado de palavras como “endemia”, “epidemia”, “pandemia”, “pandemônio” etc. Pois alguns leitores aproveitaram a deixa para lembrar que, em painéis de alguns aeroportos, o Ministério da Saúde desferiu alguns golpes contra a língua.
Um desses golpes estava nesta passagem: “…febre superior à 39 graus…”. Senhor Deus dos desgraçados, dizei-me vós, Senhor Deus: por que diabos se emprega mal o acento grave (acento indicador de crase) mesmo em casos tão óbvios e banais como o da advertência em questão?
Só os ingênuos não conhecem o poder de mensagens como essa, exibidas em painéis bonitos, em lugares “chiques” como aeroportos etc. O cidadão bate os olhos e fica com aquilo na memória e, quando vai escrever, tende a repetir o que viu ali.
Se a escola cumprisse sempre a sua parte nesse quesito, ou seja, se mostrasse como é o fenômeno da crase, talvez se eliminasse uma das razões de as pessoas terem tanta dificuldade para perceber que “bater a porta” é bem diferente de “bater à porta” e que “viver a espera de viver ao lado teu por toda a minha vida” também é bem diferente de “viver à espera de viver ao lado teu…”.
Pois não custa relembrar os passos básicos. Vamos lá. O “a” com acento grave resulta de “a” + “a”, em que o primeiro “a” é sempre preposição, e o segundo “a” quase sempre é artigo feminino (quase sempre, é bom enfatizar). Em “Sugeri à diretora que relesse o texto”, por exemplo, ocorre a fusão da preposição “a”, regida pelo verbo “sugerir” (se alguém sugere, sugere a alguém), com o artigo “a” (feminino, singular), determinante do substantivo “diretora” (feminino, singular). Um truque velho e conhecido consiste em trocar o substantivo feminino (“diretora”) por um masculino: “Sugeri ao diretor…”. Num passe de mágica, o “à” se transformou em “ao”.
Em “febre superior a 39 graus”, é evidente a presença da preposição “a”, regida pelo adjetivo “superior” (se algo é superior, é superior a). Para que o “a” que precede “39 graus” receba acento grave, é preciso que ocorra a fusão com outro “a”. Cadê esse outro “a”? Seria um artigo (feminino, singular), determinante da expressão “39 graus”, que é masculina, plural? Claro que não. Não há outro “a”, caro leitor.
Embora a indevida presença do acento grave no “à” de “superior à 39 graus” não mude o preço do feijão, entender por que nesse caso ele é indevido ajuda a entender outras construções em que a presença dele muda o preço do feijão, sim.
Quer um bom exemplo? Lá vai: “Mantém-se a/à esquerda”. Que lhe parece? Em “mantém-se a esquerda”, a expressão “a esquerda” é sujeito. A construção equivale a algo como “A esquerda se mantém”. Em “Mantém-se à esquerda”, o sujeito certamente foi citado antes e, no caso, está representado pelo pronome “ele/ela”, implícito na flexão verbal “mantém”, da terceira pessoa do singular. Agora, indica-se que alguém se mantém à esquerda, ou seja, continua nessa posição (física ou política).
Em termos de fluidez de leitura, tudo isso faz uma enorme diferença. A leitura vai, avança, flui, sem tropeços, sem necessidade de voltar a partes anteriores. É isso.
inculta@uol.com.br

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