Concordância: os óculos dos Estados Unidos

Mais um excelente texto do professor Pasquale!

 

PASQUALE CIPRO NETO

“…a turbulência que atravessa os EUA…”

Dia desses, num dos programas de uma das emissoras que carregam o “News” no nome, ouvi a frase que dá título a esta coluna. Na verdade, não se disse “os EUA”, e sim “os Estados Unidos”.

Como se sabe, em se tratando do padrão formal da língua, a expressão “Os Estados Unidos” (quando sujeito) exige o verbo no plural, já que o artigo (“os”) aparece flexionado no plural. Em sendo assim, são do padrão culto construções como “Os Estados Unidos certamente nunca imaginaram que um dia passariam pelo que estão passando” ou “Ao longo da história, os Estados Unidos produziram mais guerras do que qualquer outra coisa”.
Na outra ponta, isto é, no uso efetivo da língua, sobretudo na fala, constata-se que não são raras construções como “Os Estados Unidos certamente nunca imaginou que…” ou “Ao longo da história, os Estados Unidos produziu mais guerras do que…”, em que o verbo é posto na terceira pessoa do singular. A explicação para esse fato é simples: alguns falantes tendem a entender “os Estados Unidos” como uma unidade, ou seja, como uma coisa só, um país, e aí fazem a concordância com a ideia e não com a forma. Muita gente chega a dizer “o Estados Unidos” (sim, com o artigo no singular), o que evidencia ainda mais a ideia de que se considera o nome próprio “Estados Unidos” como uma unidade, uma coisa só.

Como já afirmei diversas vezes neste espaço, explicações como as que acabamos de ver dizem respeito mais à linguística do que à gramática. Como se sabe, a linguística não diz como deve ser; diz como é (e tenta explicar por que é como é).
Posto isso, convém dizer que, em linguagem formal, a construção predominante é a que apresenta o verbo no plural: “Os Estados Unidos são um dos três países que formam a América do Norte”; “Os Estados Unidos ainda conseguem aplacar sua crise vendendo seus títulos”. Pois bem. E como fica a frase que está no título desta coluna? Quem atravessa quem? A julgar pelo que ocorre no padrão formal da língua, diz-se que a turbulência atravessa os Estados Unidos, varre o país, percorre-o de ponta a ponta, mas… Mas, levando-se em conta o contexto em que a frase foi proferida, parece que se queria dizer que são os Estados Unidos que atravessam a turbulência, isto é, enfrentam essa turbulência, são atingidos por ela.
Em outras palavras, quando se analisa a construção em questão sob a ótica do padrão formal da língua, só se pode entender que é a turbulência que atravessa, atinge, varre os Estados Unidos. Para que se entendesse que são os Estados Unidos que atravessam a tal turbulência, seria necessário flexionar no plural a forma verbal escolhida: “…a turbulência que atravessam os Estados Unidos”. Melhor mesmo seria a ordem direta: “…a turbulência que os Estados Unidos atravessam”.
Fenômeno semelhante ao que se vê com “Estados Unidos” se dá com a palavra “óculos”, que, no português do Brasil, há muito tempo virou substantivo que designa uma coisa só, uma unidade (“o óculos”, “meu óculos”). Apesar desse uso mais do que difundido, as edições mais recentes dos nossos mais importantes dicionários e o “Vocabulário Ortográfico”, da ABL, continuam registrando “óculos” como “substantivo masculino plural”.
O “Houaiss”, por exemplo, diz que é “erro a discordância de número (um óculos) que se tem vulgarizado no português coloquial do Brasil (formas corretas: uns óculos, meus óculos, um par de óculos)”. O “Aulete” diz algo semelhante. É isso.

 

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Publicado no jornal Folha de S. Paulo em 20 de outubro de 2011.

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