Cadê o cujo?

Mais um excelente texto, cuja leitura vale a pena!

(Ó, colocamos o “cuja” aí, direitinho, como manda o professor!).

 

PASQUALE CIPRO NETO

 

‘…estava previsto para embarcar…’


O fato é outro: é o cacoete, a expressão viciada, guiada pelo piloto automático, usada irrefletidamente


 

Neste espaço, já citei mais de uma vez um texto que o grande Otto Lara Resende publicou nesta Folha, em 1992, no qual o mestre mineiro falava do “desaparecimento” do pronome relativo “cujo”, que “bateu asas e voou. Virou ave migratória”.
Esse texto chegou a ser mote de uma questão da Unicamp, cujo enunciado começava assim: “O comentário acima, do escritor Otto Lara Resende, refere-se ao fato de que o uso do pronome relativo ‘cujo’ é cada vez menos frequente. Isso faz com que os falantes, ao tentarem utilizar esse pronome na escrita, construam sequências sintáticas que levam a interpretações estranhas. Veja o exemplo seguinte: ‘O povo não só quer o impeachment desse aventureiro chamado Collor, como o confisco dos bens nada honestos do sr. Paulo Cesar Farias e companhia. E que a esse PFL e ao Brizola (cuja ficha de filiação ao PDT já rasguei) reste a vingança do povo…'”.
O manifesto é de um leitor da Folha e foi publicado no Painel do Leitor, de 30/07/92. A levarmos ao pé da letra o que ele afirma, a ficha de filiação de Leonel Brizola ao PDT foi rasgada por… Por esse leitor, uai!

Em se tratando da linguagem oral, o “cujo” bateu asas e voou mesmo, se é que um dia fez parte dela. Na escrita culta, a coisa não é bem assim. Basta ler meia dúzia de textos jurídicos, filosóficos, acadêmicos etc. para que se perceba que o “cujo” ainda respira -e sem a ajuda de aparelhos, ao que parece.
No jornalismo escrito, ora se veem construções que se espelham na modalidade culta (seria possível citar inúmeros exemplos tirados de edições recentes desta Folha, a começar pela de ontem, por exemplo), ora se veem construções típicas de quem, de um jeito ou de outro, dribla o “cujo” e produz algo como “O delegado suspeita de um funcionário, que o nome ele prefere não revelar” (em vez da construção culta “O delegado suspeita de um funcionário, cujo nome ele prefere…”).
Outro exemplo desses dribles no pronome “cujo” se vê nesta passagem: “Prevista para ser inaugurada no fim do ano, a nova avenida deve desafogar o trânsito na Giovanni Gronchi” (em vez da construção culta “A obra, cuja inauguração está prevista para o fim do ano, deve desafogar o trânsito na Giovanni Gronchi”, ou, melhor ainda, “O trânsito na Giovanni Gronchi deve ser desafogado pela nova avenida, cuja inauguração está prevista para o fim do ano”).
O fato é que a construção “Previsto/a para ser inaugurado/a” (ou “para ser iniciado/a”, “para ser posto/a em prática”, “para começar a operar” etc.) virou uma espécie de cacoete do jornalismo, sobretudo nos meios em que se exige mais rapidez (rádio, TV e internet). Do cacoete para o “exótico”, basta um passo. Veja esta construção, publicada ontem num site, logo depois que vieram à tona as informações sobre a agressão de que foi vítima o jogador João Vítor, do Palmeiras: “O grupo estava previsto para embarcar na noite desta terça-feira para o Rio de Janeiro, onde enfrenta o Flamengo, quarta-feira, mas a viagem foi adiada para amanhã”.
O grupo estava previsto para embarcar? Elaiá! Não é o caso de usar “cujo”, não, caro leitor. O fato é outro: é o cacoete, a expressão viciada, guiada pelo piloto automático, usada irrefletidamente, qualquer que seja a situação. Como se reescreveria em linguagem adequada o trecho em questão? Vamos lá: “O embarque do grupo para o Rio de Janeiro, onde amanhã a equipe enfrenta o Flamengo, estava previsto para hoje à noite, mas a viagem foi adiada para amanhã”. É isso.
inculta@uol.com.br

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Texto publicado no jornal Folha de S. Paulo em 13 de outubro de 2011, caderno Cotidiano (Disponível em:

<http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1310201104.htm>.

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